Escolhendo gêneros textuais para ensinar na escola
Leituras - Artigos
Escrito por Belisario Retto de Abreu
28-Jan-2010 Autora: Heloisa Amaral
O homem não faz nenhuma ação em sociedade, por mais simples que seja, sem se comunicar. As atividades humanas têm semelhanças entre si e podem ser agrupadas: áreas específicas de cada um dos trabalhos que a humanidade faz, área das atividades cotidianas, área religiosa. Cada área de atividade humana tem sua linguagem própria, com gêneros textuais próprios. A língua, vista dessa maneira, é viva, porque se transforma continuamente quando é usada nas comunicações entre as pessoas. Ao ensinar a ler e a escrever, é possível trabalhar com a língua viva, como é usada no dia-a-dia.
Esse modo de ver o ensino de língua é muito diferente do tradicional. Nos procedimentos tradicionais, a língua é tratada como uma coisa morta, dividida em partes. O aluno aprende sílabas numa época, substantivos na outra, análise sintática mais tarde. As aulas de gramática não são ligadas com as aulas de redação. As aulas de redação parecem não ter nada a ver com a aprendizagem de leitura. As capacidades de leitura são consideradas "naturais", como se, ao aprender a decifrar as letras e as sílabas, o entendimento de todo e qualquer texto estivesse garantido. Essa divisão do ensino de língua em gramática e ortografia, redação e leitura torna as aulas estáticas e o aprendizado segmentado. O aluno não vê ligação entre as partes, é uma língua que não está em funcionamento nos momentos de comunicação. É apenas um objeto de estudo.
Ao ensinar uma diversidade de gêneros na escola, por mais simples que eles sejam (como uma receita culinária, por exemplo), todas as palavras e letras ganham significação. A leitura, a gramática, a ortografia e até mesmo a produção escrita assumem sentido porque estão ligados pelo uso. O aprendizado da língua deixa de ser fragmentado e o ensino de ortografia e gramática é associado aos procedimentos para ampliar o letramento dos alunos. Sabemos que, se o aluno não sair da escola com um bom grau de letramento, não estará preparado para compreender o mundo.
Um bom grau de letramento é conseguido quando dominamos muitos gêneros textuais. Isso acontece porque os gêneros são representativos das áreas de atividade humana em que são produzidos e com as quais temos que entrar em contato cotidianamente, de modo direto ou indireto.
Um bom parâmetro para ter uma idéia de como temos que lidar com muitas áreas de atividades humanas todos os dias, de uma maneira ou de outra, é a programação da televisão (que é uma ampla área de atividade humana), com qual nós e nossos alunos temos contato muitas horas por dia. Essa programação pode ser usada como um "painel" para observarmos quanto precisamos nos apropriar de diferentes gêneros para compreendermos o que é transmitido e sermos críticos em relação às idéias que nela circulam. Ao ver a notícia de uma manifestação pública contra um chefe de estado, por exemplo, não basta que o aluno grave na memória quem participou dela, onde aconteceu. É preciso que ele entenda as ligações que esse acontecimento tem com a política internacional, com a economia, com a vida em sociedade. Ser letrado, então, não é somente ser capaz decifrar um bom número de textos orais ou escritos, é a capacidade de compreender as informações que esses textos trazem e de fazer relações entre elas.
Então, podemos dizer que precisamos de um alto grau de letramento para assistir televisão com proveito. Isso acontece porque, embora transmitidos oralmente, os gêneros que dão origem aos programas de TV são preparados anteriormente por escrito. Todos os programas têm um roteiro escrito como base. Muitas vezes são inspirados em livros de todos os tipos, ou em leis, ou em gêneros médicos, ou em receitas culinárias, ou em artigos esportivos e regras de jogo, outras vezes reproduzem os gêneros que circulam em jornais impressos. Ou seja, a escrita fundamenta todos os programas da televisão.
Os exemplos acima mostram como as áreas de atividade humana e suas linguagens se interpenetram e como os gêneros textuais próprios de cada uma delas podem circular também em outras áreas, pelo fato dos homens viverem em sociedade e circularem por diferentes áreas de produção de linguagem, “carregando” os gêneros para lá e para cá, para servirem às suas necessidades de comunicação.
Com o exemplo da necessidade de alto grau de letramento para ver televisão, podemos avaliar quanto precisa ser alto o grau de letramento para que possamos exercer plenamente nossa cidadania.
Os gêneros textuais e o ensino de língua
Se os gêneros textuais são tão importantes para o letramento e para a cidadania, mas são em número infinito, quais devemos escolher para incluir no currículo escolar? A primeira reflexão que precisamos fazer é que muitos deles não precisam ser ensinados na escola e outros precisam ser ensinados na escola.
Os gêneros cotidianos como os da área familiar, por exemplo, não precisam ser ensinados de forma sistemática. São aprendidos no uso, com a interação com adultos que os dominam. Estão nesse caso as fórmulas de gentileza como dizer bom dia, obrigado, como vai, etc., que os pais costumam ensinar aos filhos. Já os gêneros das áreas mais especializadas, como a literária, ou a jornalística, precisam de ensino sistematizado.
De um modo geral, em situações de comunicação informais, cotidianas, usamos gêneros que não precisam de muito planejamento para ocorrer. Esses gêneros são os que chamamos de
gêneros primários e não precisam de ensino escolar para que os alunos os aprendam.
Como exemplos de áreas de atividade humanas mais especializadas, que produzem gêneros que precisam de planejamento para existir, podemos citar a área de produção literária, a área jornalística, a área jurídica, a área científica, médica, a publicitária, etc. Os gêneros mais formais dessas áreas de atividade humana são chamados de gêneros secundários. Para serem apreendidos, esses gêneros precisam de ensino escolar.
São áreas de atividade humana que produzem gêneros que a escola precisa ensinar:
1 ̵ Área literária
O domínio dos gêneros literários é muito importante porque eles dão ao aluno conhecimento de mundo de forma agradável e ao mesmo tempo profunda. Na área literária, embora os gêneros sejam muitos e diversos, vamos encontrar situações de comunicação e de produção de linguagem semelhantes: escritores produzindo textos com a finalidade de encantar, divertir ou fazer pensar seus leitores. São gêneros literários os contos dos mais diversos tipos, os romances, as crônicas, os poemas, as memórias, por exemplo. A escola básica ensina esses gêneros há muito tempo, embora não use, em geral, a metodologia da seqüência didática que o Escrevendo o Futuro vem usando.
2 – Área jornalística
Os gêneros jornalísticos são imprescindíveis para o letramento. Nessa área, as comunicações humanas são muito abrangentes, unindo, de certa forma, pessoas dos mais diferentes países e regiões, possibilitando uma visão ampla do mundo. Nessa área, encontramos gêneros como notícias, reportagens, artigos de opinião, crônicas jornalísticas, editoriais, entrevistas, debates e muitos outros. Os gêneros da área jornalística são ensinados nas escolas com bastante freqüência nas últimas décadas, porque se acredita que pessoas desinformadas não têm condição de exercer plenamente sua cidadania.
3 – Área jurídica
Os gêneros dessa área são muito relevantes a vida social. Nela, vamos encontrar promotores, juízes, advogados, escrivães, produzindo gêneros como contratos, peças de defesa para tribunais, artigos de lei, etc., que permitem às pessoas regularem seus atos como cidadãos e seus negócios. As pessoas comuns estão o tempo todo assinando contratos jurídicos, como os de aluguel ou de financiamento para compras de eletrodomésticos. Muitas vezes estudamos gêneros jurídicos com os alunos. É o caso do estudo do Estatuto da Criança e do Adolescente e do estudo de contratos. Estudando gêneros jurídicos, os alunos podem compreender melhor seus direitos e lutar por eles.
4 – Área publicitária
Gêneros dessa área vêm freqüentando há algum tempo os manuais escolares. Seu estudo é importante para a formação do espírito crítico, da reflexão sobre o consumismo que aliena as pessoas, para a defesa do consumidor.
5 – Área científica
Gêneros textuais provenientes da área científica são indispensáveis na escola. Aliás, podemos dizer que a escola existe há muito tempo porque sempre foi consenso de que tanto eles como os gêneros literários necessitam muito trabalho de ensino para que os alunos os aprendam. Para lê-los e estudá-los com proveito, os alunos precisam desenvolver capacidades de leitura especiais, já que esses são gêneros produzidos juntamente com pesquisas científicas muito elaboradas, o que pode torná-los distantes demais do aluno. Estão nesse caso os enunciados de problemas, os textos de ciências, de história ou geografia. Os professores dessas áreas precisam conscientizar-se de que, sem sua participação no ensino de leitura dos gêneros específicos, os alunos pouco irão aprender em suas disciplinas.
6 – Outras áreas
Há esferas em novas atividades humanas e novos gêneros se impõem pela abrangência e amplidão que seu uso tem. Uma dessas esferas de atividade novas, a Internet, por exemplo, trouxe gêneros como o blog, o e-mail ou a linguagem abreviada usada nas salas de bate-papo. É importante refletir sobre o uso dos gêneros da Internet na escola, uma vez que adolescentes e até mesmo crianças usam esses gêneros cotidianamente. Uma outra área importante é a área médica. Conhecer seus gêneros, como bulas e receitas, ou mesmo artigos médicos sobre doenças transmissíveis é importante para a defesa da saúde.
Poderíamos continuar a nomear gêneros e esferas sem encontrar um fim para isso porque enquanto houver novas esferas de atividade humana, novos gêneros estarão nascendo. O importante desta reflexão, porém, é que o professor se conscientize de que é preciso diversificar o ensino de gêneros textuais na escola para ampliar as capacidades de leitura e escrita de seus alunos. Dominar diversos gêneros dessas importantes esferas que comentamos permite que o aluno se comunique com elas com facilidade.
Assim, quanto mais gêneros estudarmos com eles, mais estaremos contribuindo para que seu grau de letramento se amplie e mais estaremos contribuindo para que eles sejam cidadãos mais conscientes e atuantes.
Publicado em: 08/03/2007 na Comunidade Escrevendo o Futuro